Série Encontros Inusitados: A saga dos 5 rótulos Parte III

“No entanto, ela se move”: Teria sussurrado Galileu, depois do julgamento no Tribunal do Santo Ofício.

Condenado a negar publicamente suas teses, o cientista teve a prisão decretada pela Santa Sé. Para os homens da época, as idéias de Galileu eram mais do que a negação das Sagradas Escrituras. Eram a prova de que Deus tinha relegado seus filhos a um segundo plano. A Terra se movia ao redor do Sol, submissa e dócil. Essa conclusão fazia de Galileu não apenas um excelente cientista mas um homem cruel que tirava da humanidade o prazer de habitar o centro do universo. Mas poucos sabiam que atrás daquele homem escondia-se um apreciador de vinhos.

As correspondências com o discípulo Benedetto Castelli traziam, entre observações científicas, comentários sobre queijos e a descrição – com notas e tudo mais que constumamos fazer nos dias de hoje – dos melhores vinhos da época. Isso mesmo, além de pai da Física moderna, Galileu pode ser considerado o pai dos sistemas atuais que usamos para classifica em número a qualidade da bebida mas , sou capaz de apostar, não era um enochato.

Ao aproximar-me do túmulo de Galileu, na Santa Croce, após um rápido encontro com Michelangelo, abri o livro Diálogo sobre os Grandes Sistemas do Universo, uma garrafa do “Chianti Classico Castello di Brolio”, duas taças e muitas respostas. “Eppur su Muove”: a frase, possivelmente apócrifa, estava inscrita no mármore. Acima, erguia-se o busto de Galileu com os olhos no Firmamento, a mão direita segurando uma luneta e a esquerda repousando sobre uma esfera. Era o testemunho de que a verdade científica tinha triunfado sobre o fanatismo religioso, no entanto, ele só foi oficialmente absolvido pela Igreja Católica 341 anos após sua morte, ou seja, em 1999.

Folheei o livro escrito por ele. “O que Galileu acharia das Leis de Newton? E da Teoria da Relatividade? E a física quantica ?” questionei abrindo a garrafa de vinho. Ao observar o líquido dançar na taça, lembrei que o termômetro estava entre as inúmeras invenções do cientista. Em sua versão primitiva, o instrumento levava vinho no bulbo, em vez de mercúrio.

Silêncio.

Já havia bebido duas taças e estava pronto para deixar o lugar quando fui surpreendido por uma voz grave: “Quem está aí?”.

“Quer um pouco de vinho?”, estendi a taça na direção daquele homem que após tatear o espaço vazio segurou-a com firmeza parecendo guiar-se unicamente pela minha voz e totalmente indiferente à fraca iluminação do candelabro.

A morte não havia curado a cegueira do célebre cientista. Fiz uma pequena reverência ao concluir que estava diante de Galileu. “O vinho é composto de humor líquido e luz”, disse-me. Em seguida, girou a taça e sentiu os aromas do vinho. “Glorioso, divino!”, exclamou. Após degustá-lo, caiu na gargalhada. “Luz. Sempre soube que o vinho era milagroso, mas que frasco esquisito”, concluiu examinando a garrafa nas mãos com uma expressão de encantamento nos olhos.

"É, respondi, na verdade a garrafa deveria ser quadrada e áspera pra facilitar a... ". Sem graça, silenciei-me em minha ignorância.Ele prosseguiu: “Os homens são como frascos de vinho. Examine os frascos em uma taverna, antes de beber vinho tinto. Alguns quase não têm decoração. Estão empoeirados e despojados... Mas cheias de um vinho que inspira os bebedores a cantá-lo chamando-o de glorioso e divino. Depois, repare em outros frascos com lindos rótulos. Ao experimentá-los, você vai ver que estão cheios de ar ou perfume. Esses frascos só servem para se urinar dentro deles”.

Aquela genialidade e bom humor me fizeram rir, imaginando as garrafas nas quais urinaria e as pessoas “cheias de ar” que conhecia. “De onde você vem?”, questionou Galileu. “Do futuro”, respondi, desconhecendo resposta mais apropriada. “Como isso é possível?”, indagou incrédulo. “No mesmo ano da safra deste vinho, você foi absolvido pelo papa”, revelei a ele. “O papa sabia que eu estava certo. Meu julgamento foi uma encenação. Quer prisão melhor do que a minha? Cinco aposentos com vista para os jardins do Vaticano e um mordomo para cuidar das refeições e do vinho”, disse, referindo-se à sua “dura” pena. “Minhas idéias prevaleceram?”, prosseguiu ansioso. “Grandes cientistas apoiaram-se nelas. Um deles afirmou: ‘Se pude ver mais longe foi por estar sobre o ombro de gigantes’. E você era um deles”, respondi. Ele sorriu.

Passos na escuridão. Dois homens inconfundíveis aproximaram-se. Isaac Newton e Albert Einstein saudaram Galileu: “Gênio, Gênio”. Após apresentar os três, o autor da Teoria da Relatividade explicou aos antecessores os avanços da Física. Afastei alguns passos. Um estrondo na direção dos cientistas atrapalhou minhas divagações. Observei com assombro Newton e Einstein diminuírem de tamanho, e Galileu transformar-se em um gigante de oito metros de altura. Ele colocou os dois cientistas sobre seus ombros, pegou a luneta e passou por mim apressado, cantarolando “Eppur su Muove”. Lembrei de meu amigo gigante, André Martin. Levantei um brinde a eles, abri minha maleta e deparei com as duas últimas garrafas de vinho e o livro O Príncipe.

Eu ainda tinha uma visita a fazer antes do deixar o local.

Pausa para "prosiá" sobre "Viti-curtura!"e outras cousas mais

Algumas perolas que recebi de bons amigos e do Forúm.

Viti-curtura!
Degustação de vinho em Minas - Luiz Fernando Veríssimo

- Hummm...
- Hummm...
- Eca!!!
- Eca?! Quem falou Eca?
- Fui eu, sô! O senhor num acha que esse vinho tá com um gostim estranho?
- Que é isso?! Ele lembra frutas secas adamascadas, com leve toque de trufas brancas, revelando um retrogosto persistente, mas sutil, que enevoa as papilas de lembranças tropicais atávicas...
- Putaqueupariu sô! E o senhor cheirou isso tudo aí no copo ?!
- Claro! Sou um enólogo laureado. E o senhor?
- Cêbêsta sô, eu não! Sou isso não senhor!! Mas que isso aqui tá me cheirando iguarzinho à minha egüinha Gertrudes depois da chuva, lá isso tá!
- Ai, que heresia! Valei-me São Mouton Rothschild!
- O senhor me desculpe, mas eu vi o senhor sacudindo o copo e enfiando o narigão lá dentro. O senhor tá gripado, é ?
- Não, meu amigo, são técnicas internacionais de degustação entende?
Caso queira, posso ser seu mestre na arte enológica. O senhor aprenderá como segurar a garrafa, sacar a rolha, escolher a taça, deitar o vinho e, então...
- E intão moiá o biscoito, né? Tô fora, seu frutinha adamascada!
- O querido não entendeu. O que eu quero é introduzi-lo no...
- Mais num vai introduzi é nada e nunca! Desafasta, coisa ruim!
- Calma! O senhor precisa conhecer nosso grupo de degustação. Hoje, por exemplo, vamos apreciar uns franceses jovens...
- Hã-hã... Eu sabia que tinha francês nessa história lazarenta...
- O senhor poderia começar com um Beaujolais!
- Num beijo lê, nem beijo lá! Eu sô é home, safardana!
- Então, que tal um mais encorpado?
- Óia lá, ocê tá brincanu com fogo...
- Ou, então, um suave fresco!
- Seu moço, tome tento, que a minha mão já tá coçando de vontade de metê um tapa na sua cara desavergonhada!
- Já sei: iniciemos com um brut, curto e duro. O senhor vai gostar!
- Num vô não, fio de um cão! Mas num vô, memo! Num é questão de tamanho e firmeza, não, seu fióte de brabuleta. Meu negócio é outro, qui inté rima com brabuleta...
- Então, vejamos, que tal um aveludado e escorregadio?
- E que tal a mão no pédovidu, hein, seu fióte de Belzebu?
- Pra que esse nervosismo todo? Já sei, o senhor prefere um duro e macio, acertei?
- Eu é qui vô acertá um tapão nas suas venta, cão sarnento! Engulidô de rôia!
- Mole e redondo, com bouquet forte?
- Agora, ocê pulô o corguim! E é um... e é dois... e é trêis! Num corre, não, fiudaputa! Vorta aqui que eu te arrebento, sua bicha fedorenta!...

Esse cara já sabia o que era bom !
O Faró Tutancamon era consumidor de-vinho

Vale a pena ver de novo!
Pra quem nunca viu ou quem já viu rever esse video muito legal

Obrigado Miriam, Andre e Ana pela contribuição.

Abraços

Série Encontros Inusitados: A saga dos 5 rótulos Parte II

Ninguém sequer imagina atribuir a Jesus Cristos, características como impiedoso, severo e vingativo, exceto uma pessoa: O genial e contraditório Michelangelo.

Ele descendia de uma família aristocrática, mas após semanas exaustivas de trabalho, com suas roupas sujas e com um terrível odor, poderia facilmente ser confundido com um indigente. Era profundamente religioso, mas não dava importancia a autoridade do Bispo de Roma. Uma vez foi contrariado, fugiu do Vaticano à noite cavalgando rumo a Florença. Retornou à Santa Sé após a insistência de Júlio II. Como um autêntico renascentista, dedicou-se a diversas artes. Aventurou-se pela poesia e escreveu Coletânea de Rimas, porém sua maior inspiração não estava na pena de escritor, mas em blocos de mármore.

"Eu vi um anjo no mármore e esculpi até libertá-lo", teria dito uma vez. Quando o Papa quis transformá-lo em um pintor e encomendou a ele a Capela Sistina, Michelangelo extraiu dos pincéis uma das mais belas poesias que o mundo já contemplou.

Com umas páginas extraídas da internet sobre arte renascentista, um "Brunello de Montalcino ", duas taças e uma pergunta, aproximei-me do túmulo de Michelangelo na basílica de Santa Croce, após um encontro com Dante Alighieri minutos antes.

Era noite e o interior da igreja estava escuro. Com meu candelabro iluminei o esquife de Michelangelo, criado por Giorgio Vasari. Três lindas mulheres esculpidas em mármore sobre a urna funerária representavam a Arquitetura, a Escultura e a Pintura. Tinham uma expressão triste no rosto. A morte do genial artista deixou as Artes desamparadas. E isso era mais do que uma simples metáfora. Sentei no chão e procurei a página que havia impresso sobre o Juízo Final. Desarrolhei a garrafa e servi o vinho. Rodei a taça com minha mão direita e a elevei para cima, como se estivesse brindando a Michelangelo. O gesto era proposital e imitava uma de suas obras: a escultura de Baco, encomendada pelo banqueiro romano Jacopo Galli, em 1497. Apreciei os aromas complexos do vinho com os olhos na expressão impiedosa de Jesus Cristo. Logo abaixo do Filho de Deus estava São Bartolomeu, segurando a própria pele com a mão esquerda. Eu havia lido que o Santo que foi esfolado vivo e depois decapitado era na verdade um auto-retrato do artista. Senti no paladar a estrutura e a maciez do vinho. Seus taninos pareciam contraditórios e instigantes como Michelangelo.

Risos.

A Arquitetura, a Escultura e a Pintura não eram mais pedra triste. Deixaram o túmulo e estavam ao meu lado. Seus olhos brilhavam, contemplavam algo que eu não conseguia ver... Até que um homem com as roupas sujas de tinta e um odor forte de suor surgiu diante de nós. "Tanto tempo adormecido... o que você tem nessa taça?", perguntou. "Vinho", respondi, servindo-o na outra taça. "Mas que porcaria é essa?", cuspiu no chão. Fiquei assustado. Eu sabia que Michelangelo passara dias consumindo apenas pão e vinho. E que naquela época os vinhos eram transportados em recipientes de chumbo. Provavelmente o artista havia sido envenenado pela bebida - lembrei do meu amigo Holmes. Talvez sua reação fosse instintiva, sem nenhuma relação com a qualidade daquele Brunello.

"Esse é um dos melhores vinhos da região", respondi-lhe. "Não é melhor do que o vinho que eu bebia na taverna quando trabalhava em Roma, pintando o teto do Papa", desafiou-me. E contou que certo dia Sua Santidade exigiu que ele acrescentasse mais um anjo em uma das pinturas. Ele obedeceu, embora questionasse o gosto do Papa. No mesmo dia, foi à taverna beber vinho. "Estava uma maravilha, mas outro cliente reclamou que estava estragado e o dono destruiu os barris com um machado. Foi lamentável ver aquele desperdício", disse-me. Eu conhecia bem essa história, mas nem perdi tempo falando sobre os enochatos do mundo moderno. De repente, ele olhou para seu auto-retrato no Juízo Final. "Como se fosse uma velha serpente esgueirando-se/ Por uma estreita passagem/ E perdendo sua velha pele,/ Poderia me renovar,/ Abrir mão de meu estilo de vida e de todos os desejos humanos./ Tenho perfeita consciência de que, quando se está coberto/Com uma pele forte/ O mundo passa a não significar nada.". Ao terminar de recitar a poesia, encarou o crucifixo na nave central da Igreja. "Ele está sorrindo. Agora posso voar até o céu". Estava feliz como uma criança. Antes da viagem, virou-se para mim e disse: "Você tem um péssimo gosto para vinho". As Artes haviam se desvanecido.

Sem nenhuma companhia tomei mais duas taças de Brunello. "Já sei o estilo de vinho preferido de Michelangelo: bouchonné", conclui, aos risos.

Minha pergunta estava respondida,abri minha maleta e vi que restam ainda três garrafas de vinho.

Ainda não era o momento de deixar Santa Croce.

Série Encontros Inusitados: A saga dos 5 rótulos Parte I

Acho foi em “As Mansões Filosofais” de Fulcanelli onde li que os túmulos dos homens sábios possuem um estranho magnetismo. Desde então, cultivo o hábito de visitá-los quando posso. Acredito que estão repletos da "alma" de seus ilustres habitantes. Costumo tocar as pedras sepulcrais na esperança de compartilhar experiências de vida e "absorver" qualidades excepcionais, da mesma maneira que um religioso se aproxima de relíquias de santos para ganhar bênçãos celestes, ou índios canibais devoravam o corpo de pessoas admiradas para "roubar" suas virtudes.

Para estas excentricidades do meu espírito, nenhum cenário mais apropriado do que a basílica de Santa Croce, localizada no berço do Renascimento. A belíssima fachada de mármore, branco, verde e rosa, escondem um interior adornado por capelas projetadas por Giotto, Della Robbia e Brunelleschi e, o mais importante, as sepulturas de gênios como Michelangelo, Maquiavel, Galileu Galilei e Dante Alighieri.

Do nada uma pessoa me interrompe com um sotaque estranho, mas falando em português. "Você sabia que Michelangelo foi sepultado nessa mesa, após ter seu corpo roubado pelos florentinos?". Como desejava estar de corpo presente na Santa Croce sozinho e próximo do silêncio que aproxima os séculos, fiz um esforço para ser amigável e cultivar uma amizade, confesso que por interesse, depois de observar uma insígnia em seu colete. "Você tem a chave daqui?", perguntei, poucos minutos antes de acabar o horário de visitação. "Sou um dos anjos-guardiões", gabou-se ele. "Estudo geometria sagrada e gostaria de fazer algumas medidas e observações. Mas preciso de sossego. Você me entende?", confidenciei-lhe. "Estamos falando de 300 euros", afirmou sem rodeios, para meu espanto. Negociamos a cópia das chaves em 250 euros e um botton da bandeira do Brasil que sempre levo para presentear os aficionados pelo exotismo tropical.

Horas depois, eu ingressava na Santa Croce com um candelabro, cópias de “A divina Comédia”, outra de “Diálogo sobre os Grandes Sistemas do Universo”, “O Príncipe”, “Gabriela”, umas páginas impressas da internet sobre obra renascentista e uma maleta de degustação com quatro rótulos italianos e um brasileiro cuidadosamente selecionados e com as taças apropriadas. Senti-me atraído para o túmulo de Dante, autor de A Divina Comédia. Exilado de sua terra natal em 1302, após seus partidários políticos, os Bianchi, perderem uma disputa para os rivais, os Neri, o poeta morreu e foi sepultado em Ravena. Florença quis resgatar os restos mortais de seu filho ilustre e construiu um imponente sepulcro em Santa Croce. Mas seus ossos nunca foram transladados para lá. Abaixo daquela imensa estátua de Dante, havia uma urna vazia. O monumento fúnebre expunha uma mágoa de séculos. O rosto da escultura, iluminado pela luz amarelada da vela em meu candelábro, revelava uma tristeza sombria. Desarrolhei a garrafa de "Vaio Amaron", vinho produzido pelo conde Pieralvise Serego Alighieri na propriedade Casal dei Ronchi, em Gargagnago, adquirida, em 1353, por um dos três filhos de Dante, na região de seu exílio.

Sentado no chão, sorvi o primeiro gole daquela bebida concentrada, complexa e aveludada, lendo o verso inicial da obra-prima do poeta: "Nel mezzo del cammin di nostra vita/mi ritrovai per una selva oscura/che la diritta via era smarrita./ Ahi quanto a dir qual era è cosa dura/esta selva selvaggia e aspra forte/che nel pensier rinova la paura!/ Tant'è amara che poço è più morte;" (Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo. Ah, como é difícil descrevê-la! Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível...). Ouvi um longo suspiro. Fui surpreendido por um homem todo vestido de vermelho. Cabeça coberta e emoldurada por uma coroa de louros. O rosto era inconfundível. Eu estava diante do poeta Dante.

"Onde estou?", questionou-me surpreso. "Em Florença", respondi-lhe, oferecendo-lhe uma taça do vinho de seus descendentes. "Finalmente voltei para casa", disse-me, sorrindo. Durante horas, o poeta me contou a saga iniciada no momento de sua morte, quando foi arrastado para o mundo que ele próprio criara. Falou com detalhes sobre cada um dos nove círculos do inferno e do purgatório. E da ansiedade em chegar ao Paraíso. Fez uma longa pausa assim que terminou a quarta taça do Amarone. "E como é o Paraíso?", questionei curioso. Sem dizer nada, ele abriu outro largo sorriso. Seus olhos, distantes no tempo e no espaço. "Minha Beatriz... Estou pronto. Podemos ir", disse, desaparecendo subitamente. O poeta partia com a musa que conhecera aos nove anos e pela qual nutrira uma paixão platônica por toda a vida.

Reconciliado com sua cidade e de braços dados com sua alma gêmea, Dante havia chegado ao próprio paraíso.

Eu, na terra, ainda com 4 garrafas.

Série Encontros Inusitados: (Re)encontro


Mrs Elizabeth Fleming McTarry, ou “M”, como ela mesmo assinava suas correspondências, havia me indicado um restaurante nos arredores de Londres onde havia uma confraria com degustações semanais e ofereceu seu carro para que eu fosse em seu lugar já que no dia do evento seu marido Ian ia ler para um publico seleto de editores e escritores um capítulo do seu novo livro: Cassino Royale.
Ao chegar, tomei meu lugar no restaurante onde participaria de uma degustação às cegas e não pude deixar de notar um inglês de perfil aquilino, alto, magro que sentara ao meu lado que sem preâmbulos me disse: Preciso de sua ajuda, não entendo absolutamente nada de vinhos apesar de ter acurada percepção olfativa. Nunca estive em uma prova de vinhos antes.

Éramos cinco. Depois de recebidas as fichas de avaliação começamos o ritual em profundo silêncio e concentração. Após as provas, vieram as considerações, uma a uma:

O primeiro, um francês, afirmou que o primeiro vinho era um Malbec da região de Cotes-du-Rhône da safra de 1997 com mais concentração tânica que o normal. O segundo ele considerou ser um Cabernet Sauvignon da região do Languedoc da safra de 1999 com talvez um corte de Shiraz, o terceiro vinho um assemblage de Vannières 1995. O quarto vinho era sem dúvida um Cabernet Franc e o quinto um Bordeaux com aromas de mofo.

O segundo A. Doyle, concordou que quinto vinho era um Bordeaux de baixa qualidade e que derveria ser evitado. Quanto ao assemblage, discordava, era Domainde d´Ott e não um Vannières. O primeiro vinho seria um Ventoux de safra medíocre e o segundo um Hermitage esplendido de 98.

O terceiro outro francês decepcionou a todos dizendo que eram apenas tintos simples de mesa.

Paramos para um típico "coffie brequê" , quando na volta meu colega inglês tomou a palavra e disse:

" O primeiro vinho, vinho de maciez admirável, boa concentração de tâninos de qualidade, aromas mentolados com toques de ervas é um Merlot. O Segundo é um assemblage com prováveis 65% de Shiraz em sua composição adicionados aos 15% de Crenache, 10% de Carignan e 10% de Cabernet Sauvignon. O terceiro vinho é experimental da uva Syraz feito sob microvinificação sem aromas definidos ainda, bastante jovem. Finalmente o quarto vinho é um Carbert Sauvignon de 1990, Cinsault, muito bem elaborado e de ótimo acabamento. O quinto vinho é realmente um Bordeaux ordinário.

Com exceção do Bordeaux todos são de Languedoc, Village Saint-Efigênia, produzidos por M Blackwood, nosso companheiro aqui presente."

Entusiasmados, aplaudimos de pé.

Dando uma carona pra ele no carro de Ms Fleming, depois de meus incansáveis apelos ele explicou: Quando percebi que Blackwood era um produtor, aproveitei o intervalo e acessei via o site da vinícola. Como ele só tinha quatro vinhos eu deduzi que um dos vinhos não era dele e como ninguém é estúpido de levar um vinho melhor que os seus, só podia ser o Bordeaux que os outros degustadores haviam identificado ao notar o aroma de mofo. Depois disto, usando as fichas técnicas, foi fácil identificar os quatro pelos aromas, que como você sabe é minha especialidade.

Você disse que pelas unhas, pelos dedos, pela roupa e pelo sotaque, consegue identificar uma pessoa, mas Blackwood é um homem de mãos finas, sotaque parisiense, ruivo e alto, bem típico do norte da França. Como é que você descobriu que ele era um produtor?

“Elementar meu caro, ele era o único que parecia não entender de vinho"

E assim me despedi dele, deixando-o em frente a sua casa no 221 da Baker Street, nunca mais vi meu amigo Sherlock Holmes.

Série Encontros Inusitados: Lord Nelson


Foi difícil deixar Portugal, mas a curiosidade de rever Mrs Fleming McTarry pessoalmente e passar a virada do ano olhando o Big Ben foram mais fortes. Então, após uma semana bem vivida, me despedi de Portugal e embarquei no Eurostar cheio de nostalgia. Achei uma brincadeira de mau gosto ao chegar à fatídica ilha e deparar com uma estação chamada Waterloo. O deboche não combina com a ironia refinada atribuída aos ingleses. E certamente as qualidades aristocráticas dos súditos da realeza não estavam presentes quando Napoleão Bonaparte perdeu a guerra no campo de batalha de Waterloo, a julgar pela piada sobre a posição indecorosa. Sem nenhum decoro, meus pés pisaram em Londres, e pisotearam a memória do imperador francês.

Precisava me instalar na casa de Mrs. Fleming o mais rápido possível, pois o reveillon estava próximo e não queria perder a “virada” na Trafalgar Square.

A julgar pela pontualidade britânica, nenhum lugar mais preciso para acompanhar a passagem do ano do que com os olhos no Big Ben. Fui recebido pela minha anfitriã – hoje, esposa de Ian Fleming, um escritor de romances policiais sem muito destaque - com uma xícara de chá na mão. "Aqui se bebe chá preto com um pouco de leite", ensinou-me Ms. Fleming, instilando em mim o desejo de conhecer mais sobre a bebida. Podem criticá-los à vontade, mas reconheço a arte inglesa de se apropriar do prazer alheio e apreciá- lo como ninguém. É uma herança imperialista que lhes confere uma aura de elegância impagável. Produzem um vinho de qualidade sofrível, mas degustam melhor do que qualquer outro povo os Grands Crus Classés de seu vizinho. E qual é a primeira pessoa que vem a mente ao se pensar em puros habanos? O primeiro-ministro Winston Churchill. Apreciador de champagne, talvez ele tenha parafraseado o imperador Napoleão Bonaparte inúmeras vezes durante o desarrolhar da Segunda Guerra Mundial: "Nas vitórias é merecido, nas derrotas, necessário".

Após mais alguns minutos de conversa com Ms. Fleming, parti para a Trafalgar em um clássico táxi preto. No percurso, constatei que havia me esquecido de um detalhe fundamental. Uma garrafa de champagne seria indispensável para a comemoração.

Lembrei-me de ter visto uma loja de bebidas na estação de Waterloo e segui para lá. Tive a sorte de encontrar uma meia garrafa de "Moët & Chandon Brut Imperial". A ironia me acertou em cheio. Apesar de estar em "Waterloo", eu segurava em minhas mãos um tesouro francês. Era uma pequena vitória sobre a arrogância inglesa. Fui para a Trafalgar sorrindo de contentamento. Milhares de pessoas preenchiam as ruas em torno da praça.

Aguardavam a meia-noite com garrafas de cerveja. Escondi minha pequena champagne no casaco e esperei os fogos de artifício. Achei estranho quando recebi "Happy New Year" de dezenas de pessoas. Apenas uma pequena luz vermelha atravessou o céu turvo. Só percebi que ainda estava no século XXI quando olhei no relógio de pulso. Que decepção! Percebi alguém no pináculo central da praça sorrindo para mim.
Era Lord Nelson, o almirante inglês que "derrotou" Napoleão. Nunca o ditado: "Quem ri por último, ri melhor", tinha feito tanto sentido pra mim até aquele momento.

Abri o champagne ao som da "Sinfonia Nº3", de Beethoven em minha mente.

Série Encontros Inusitados: Pessoa


Recomposto da ameaça de Irache, decido por encerrado meu expediente de Indiana Jones tupiniquim em direção a Santiago de Compostela quando encontro dois portugueses na volta para Paris, Senhor Ramos, que me convenceu a viajar de carro para Portugal ao invés de usar o trem. Ele dirigiria um trailler gigantesco com três camas, que deixaria em sua terra natal, e eu o seguiria em um mini , acompanhado por Tavares, um intelectual que não sabia dirigir e adorava divagar sobre os poemas de Fernando Pessoa e, o mais importante: “pagaria as despesas”.

Após uma noite de insônia, parti para Portugal. Cruzamos Bordeaux com apenas uma parada para o almoço (não, eu não tomei vinho), e atravessamos a Espanha. Ramos quis parar para dormir. Eu estava exausto, mas Tavares me convenceu a prosseguir a viagem "Boa é a vida, melhor é o vinho" (Fernando Pessoa), com a condição de que descansaríamos no carro assim que cruzássemos a fronteira. Quando chegamos a Portugal, eu já era íntimo de Fernando Pessoa e tinha sentado no divã com todos os seus heterônimos. Quase não chegamos à aldeia. Acordei com Tavares dormindo e o carro em direção a um despenhadeiro. Consegui evitar o acidente saltando sobre o volante e patinando na pista. "O que aconteceu?", Tavares acordou assustado. "Você baixou o freio de mão. Quase morremos", respondi irritado. "Que a morte me desmembre em outro, e eu fique/ Ou o nada do nada ou o de tudo/ E acabo enfim esta consciência oca/ Que de existir me resta". Ignorei os outros versos de "Temor da Morte" (Quarto Tema), que Tavares recitou antes de adormecer.

Aromas de grama molhada, toques animais e notas de tostado prenunciaram a chegada na pequena aldeia. E despertaram Tavares. As casas eram simples e encantadoras. As pessoas tinham doçura no olhar. "Aqui, todo mundo é parente da vidente de Fátima. Mas minha esposa é a única pessoa que pode visitá-la no hospital, além do papa e do bispo", confidenciou-me Tavares. Por mais fascinante que a história pudesse ser naquele momento eu só queria uma cama bem arrumada. Somente no dia seguinte tive forças para visitar Fátima, junto com Ramos, que havia se reunido a nós. Apenas uma única árvore lembrava o bosque original onde Lúcia e seus colegas receberam os três segredos da mãe de Cristo. O resto estava soterrado em várias camadas de concreto. Dizem que quando as pessoas se reúnem para uma refeição, Jesus Cristo está entre elas. Deixei Fátima para encontrar seu filho em uma mesa rústica de madeira, na casa de Tavares, com uma deliciosa "Chanfana" (guisado com carne de cabra e vinho), preparada por sua esposa. Após a refeição e alguns copos de vinho "da casa", Tavares me olhou, esboçou um sorriso e disse: "Segundo Fernando Pessoa, ´Boa é a vida, melhor é o vinho´. Quero abrir uma garrafa especial para comemorar a sua presença".

A mesa estava repleta de doces conventuais e o aroma adocicado de ovos e baunilha inundavam a casa. "Muito melhor do que uma tábua de queijos fedorentos. Você não acha?", provocou Ramos. Mal pude acreditar quando Tavares voltou com uma garrafa de Porto e outro Madeira. Enquanto apreciava na pequena taça de cristal, perdi a revelação inédita do Terceiro Segredo de Fátima - na época, a Igreja Católica ainda não o tinha anunciado -, e piadas sobre os vinhos franceses de Sauternes. Degustei o vinho gota a gota, como um prêmio após quase vinte e quatro horas de estrada e um triunfo sobre a morte. Quando voltei a mim, percebi o desconsolo no rosto de Ramos. "O que houve?", indaguei suspeitando de que ele não tivesse apreciado a bebida, apesar de estar com a taça vazia nas mãos. "Oras, pois... esquecemos a melhor parte: O brinde !"

2016: O ano das Olimpíadas


Em fevereiro de 2016, as Olimpíadas serão realizada aqui, no Rio de Janeiro, pela primeira vez. Infelizmente, ela será a mesmo velha e chata monotonia de eventos que tirando os esportes mais populares só vai servir mesmo pra gente que não tá nem ai pro seu próprio quintal bater no peito e dizer que tem orgulho de ser brasileiro - Isso é uma vergonha. Tirando meu mau humor quando se trata de vestir a camisa da seleção e ouvir gritarias histéricas país afora não posso negar que isso pode ajudar a imagem do país e de alguns dos seus produtos.

Claro que não vou perder a oportunidade de dizer meu recado aos produtores de vinho mesmo que sequer passem perto desse blog, mas vai que um dia numa " googlada" eles caem por aqui.

Eu sinto que nosso vinho tem sido seriamente negligenciado pelo COI e podemos usar esse evento para mostrar nosso vinho nacional.

Como todos vão estar com a cabeça voltada para os esportes, podemos usar a mesma linguagem e pela orla carioca desfilar modalidades esportivas como:

Prova de Velocidade

Concorrentes, usando patins, parando a cada meia volta para provar e identificar uma série de vinhos. O atleta que concluir o percurso no menor tempo ganharia mais tempo para degustar, mas as sanções seriam aplicadas por cuspir e não conseguiu identificar um vinho.

Prova de vinho com Pão

Depois de consumir 3 garrafas de Merlot nacional, concorrentes descem pelo cabo do bondinho do Pão de Açúcar.

A prova do Cristo

Depois de beber 6 garrafas de Merlot nacional, concorrentes sobem até o Cristo Redentor para serem recebidos com espumante nacional.

E por ai vai...

Série Encontros Inusitados: A ameaça de Irache


Com mochila nas costas e cajado na mão, resolvi trocar os prazeres da boa vida pelo estoicismo dos cristãos medievais. É com esta imagem que começo a peregrinação até Santiago de Compostela.

Quanto aos vinhos, não espero cruzar com nenhum rótulo prestigiado das regiões produtoras que vou atravessar especialmente Rioja. Talvez vinhos rústicos de família, servidos em jarros de barro ou garrafas reutilizadas inúmeras vezes.

Após alguns dias de caminhada e refeições à base de carne, peixe e massa, eu chego a um dos pontos considerados emblemáticos pelos caminhantes, a "Fonte de Irache", construída em 1991 pela bodega do mesmo nome com a intenção de oferecer aos peregrinos, gratuitamente, todo o vinho que pudessem beber. Basta abrir uma das duas torneiras - a outra é de água - e se deliciar diretamente na fonte. Quando a esmola é demais o santo desconfia. Não tenho nenhuma pretensão de degustar um vinho excepcional de Navarra, ainda mais naquelas circunstâncias. Isso não me impediu de ficar imensamente infeliz ao perceber que não havia vinho nenhum jorrando lá. E ainda mais após ler um comunicado pendurado na parede, alertando aos passantes que para chegar com saúde a Santiago deveriam provar o vinho de Irache. Cético, claro, não acredito na ameaça e ignoro os vinhos em lata comercializados em uma antiga geladeira de coca-cola.

À noite, após deixar Irache e caminhar todo o dia praticamente sem descanso percebo que se tivesse comprado uma latinha de vinho, talvez tivesse sido poupado de uma lesão no joelho esquerdo e de dezenas de bolhas nos pés que quase acabaram com essa minha aventura.

Com bolhas e sem vinho vou adiante, rezando para que nada de mal me aconteça. Mas a benção - ou maldição - do vinho parece me acompanhar dia-a-dia. O ditado "com pão e vinho se faz um bom caminho" parece slogan publicitário das vinícolas espanholas que estão na rota de peregrinação, mas transcende o hábito moderno da degustação e encontram respaldo nas características medicinais da bebida, já observadas pelo grego Hipócrates, centenas de anos antes de Cristo. "O vinho é uma bebida substancialmente maravilhosa apropriada ao homem, na saúde e na doença, se o administrarmos na justa medida, segundo a constituição de cada um", disse o pai da medicina. Mas, como disse o dramaturgo Eurípedes, conterrâneo de Hipócrates, "o vinho foi dado ao homem para acalmar suas fadigas". E eu, um enófilo penitente, pretendia ter forças para pagar todos os meus pecados - incluindo os da gula - e me livrar da ameaça de Irache a qualquer custo.

Com refeições ainda à base de carne, peixe, massa e vinhos que animam o corpo e desanimam o espírito, chego a um vilarejo chamado Bercianos del Camino, tão pequeno que poderia ser atravessado de ponta a ponta em poucos minutos. Na chegada, sou saudado por um homem sorridente que me conduz ao único albergue do pueblo. É o hospitaleiro. Muito religioso, disse que o pagamento é donativo e a refeição, comunitária. No único armazém existente, cometo uma heresia e compro um vinho em embalagem Tetra Pack, a única opção disponível. Na "sala de jantar", duas mesas de madeira são compartilhadas por dezenas de peregrinos. Fico assustado com a quantidade de Tetra Packs. Antes do "banquete", orações em espanhol e a tradicional canção do peregrino entoada em francês. Logo, pratos de salada e macarronada com pedaços de embutidos, preparados pelos hospitaleiros, circulam entre pessoas famintas.

Ressabiado, aceito em um copo de plástico a "dádiva de Dionísio". Imaginei que o deus grego estivesse no Olimpo dando gargalhadas da minha sorte. Mas sua alegria durou pouco. No primeiro gole, aquele vinho parecia mais elegante do que o "Château Margaux ". Na sobremesa, era melhor do que o mítico "Chateau d´Yquem ". O caminho de Santiago de Compostela é cheio de histórias misteriosas, de encontros com anjos e demônios e dos mais diversos milagres. Hoje, eu acredito ter participado de um milagre.

Vale a pena experimentar