Não gosto e não concordo com boa parte do sistema democrático de governo, mas a democracia ainda é o melhor modelo que conheço. Enquanto filósofos e estudiosos do nosso tempo não encontrarem outro sistema, devemos ficar sujeitos às coisas boas e ruins da democracia como, por exemplo, políticos. Uma categoria que nada parece aplacar a sua sede de poder.
Apenas um adjetivo identifica todos eles como membros de um mesmo espécime, independente de época, partido político ou país revelando o nome do mestre: maquiavélico. Teria sido Nicolau Maquiavel um homem tão terrível? Ao me aproximar de seu túmulo, na Santa Croce, eu já havia bebido com Dante, Michelangelo e Galileu. Para cada um deles, um estilo de vinho. Com o autor de A Divina Comédia, um Amarone feito por seus descendentes. Um honesto Brunello tinha revelado o gosto questionável de um dos artistas mais sensíveis do renascimento e um Chianti Classico levado luz aos olhos do pai da Física.
Para Maquiavel, reservei um super-toscano. A introdução de uvas estrangeiras em um corte italiano denunciava que alguns produtores fizeram alianças com o inimigo para cativar o gosto dos enófilos, mesmo que o preço tenha sido uma punhalada na tradição. Ou seja, praticaram as lições de O Príncipe, obra-prima de Maquiavel, escrita em 1513.
Apanhei o livro e me preparei para dar os passos finais, que me colocariam face a face com o pai da Política moderna. De repente, a luz do meu candelabro se apagou. Uma voz agonizante cortou o silêncio seguido por milhares de gritos, lamentos, gemidos. Acendi novamente a chama e olhei para a urna funerária de Maquiavel. Um homem, sentado sobre ela, estava concentrado mostrando a sisudez de sua face. Era Adolf Hitler. Desarrolhei um "Ornellaia" e servi apenas minha taça. Vinho é uma bebida que exige companhia, mas, em certos casos, deve prevalecer o ditado: "Antes só do que mal acompanhado". Quando me viu empunhando a taça, o abstêmio mais cruel que a humanidade jamais conheceu ergueu-se e ameaçou um discurso, mas desapareceu na escuridão como exorcizado ao ver o vinho refletir a luz. Sorri com a ironia: A personificação da maldade derrotada por uma taça de vinho.
O túmulo era ornamentado por uma escultura de mulher. Nas mãos de pedra, um perfil de Maquiavel. Como seu vizinho na basílica, o poeta Dante, o primeiro grande pensador da era moderna também tinha sido exilado por razões políticas. Enquanto degustava o primeiro gole, abri aleatoriamente o livro e li a citação: "É melhor ser temido que amado". Observei calmamente um homem sair do esquife- já havia bebido muitas taças de vinho -. "Obrigado, você me libertou. Desde que cheguei aqui, um maluco bloqueava minha saída, ora em silêncio, ora proferindo discursos inflamados. Este último era um dos piores", desabafou. Servi-lhe uma taça do "Ornellaia". "É um belo vinho, mas não tem o gosto da minha terra. Isso me lembra o exílio. Apesar da distância, os aromas e os sabores de alguns vinhos me traziam de volta para cá", revelou.
Nicolau narrou episódios saborosos da história. Eu não conhecia a maioria e desejei não ter bebido tanto. Mas, em sua voz, os personagens desfilavam diante de nossos olhos. "Vamos percorrer a cidade", convidou-me. Deixamos Santa Croce. Ao passarmos diante da Galleria degli Uffizi, os homens mais ilustres da cidade deixaram os postos de estátuas ornamentais e aproximaram-se de Maquiavel. Antes de cumprimentá-los, ele me disse: "Nada faz o homem morrer tão contente quanto o recordar-se de que nunca ofendeu ninguém, mas, antes, beneficiou a todos". Contrariando o próprio conselho, Nicolau tinha se tornado um dos homens mais amados da Itália.
O passeio havia acabado.
Na manhã seguinte, estava a caminho da estação de trem, quando pessoas apressadas, em trajes estranhos, passaram por mim. Uma delas se deteve e me olhou, assustada. "Onde você está indo?", questionou. "Bahia", respondi rispidamente, diante da insolência. "Justo agora! Savonarola será queimado na praça", justificou correndo para alcançar o grupo.
Continuei meu caminho, não desejava presenciar o reformador dominicano arder na "fogueira das vaidades", criada por ele mesmo. Eu levava na bagagem o melhor da Itália e de volta, “Gabriela” e um vinho produzido no Vale do São Francisco que não ousei abrir por não estar na temperatura correta o que me tornaria, no mínimo, maquiavélico.