Série Encontros Inusitados: Eu e o vinho

Em uma mesa ao lado da minha sentou-se um casal conhecido e uma mulher deslumbrante e desacompanhada.

Ao sair, passei pela mesa e os cumprimentei `a distância, como é de bom tom em restaurantes, mas a mulher que parecia ter saído de um sonho nem sorriu.

No carro, guiando, pensava nela, em casa não consegui me concentrar nem no seriado do batman dos anos 70 e acabei adormecendo afundando a cabeça no travesseiro como em seus seios.

Dia seguinte, telefonei ao meu amigo e perguntei quem era aquela mulher. É casada, respondeu o amigo, e bem casada, nem perca tempo. E por que estava sozinha ? insisti. Porque tínhamos ido a uma degustação de vinhos da qual ela freqüenta e o marido não foi porque detesta vinho.

Desliguei e apesar de não beber vinho na época eu me inscrevi naquela confraria para a degustação da próxima semana.

Dia da degustação, salão cheio, timidamente sentei-me no canta mais afastado e fiquei na moita. Ela chegou, sentou-se logo na primeira fileira de cadeiras. Ao fim da degustação todos falavam sobre suas percepções e ela deu um show, detalhando aromas, cores, brilhos, sabores, evoluções. Todos ouviam embevecidos. Eu agradeci a Deus por ter sido esnobado pelo orientador da degustação que nada me perguntara, poupando-me assim de dizer asneiras.

Diáfana, inacessível, distante, uma deusa intangível.

Semana seguinte, me inscrevi novamente. Comprei livros sobre vinhos em português, espanhol, inglês, francês. Visitei sites do Parker, da Wine Spectator, Decantes, ABS e decorei as fichas técnicas.

No dia da degustação, cheguei mais cedo e sentei na primeira fileira, discretamente e a três cadeiras dela. Ela chegou e ocupou seu lugar cativo. Para os outros um leve aceno, para mim um nada.

Quando o orientador da degustação me perguntou sobre o vinho, falei..não...não falei, declamei os aromas decorados de todos os livros e sites, mas nem por isso chamei a atenção ou sequer um olhar dela.

A degustação seguinte seria às cegas. Eu não apenas me inscrevi como voltei no dia seguinte, subornei a secretária e obtive a lista dos vinhos da prova: “ Vinhos do Rhône”.

No dia da degustação sentei-me a apenas uma cadeira de distância dela. Quando as fichas de degustação foram lidas adivinhem... Apenas eu havia acertado todos os vinhos. Ela havia errado apenas um. Finalmente as pessoas haviam tomado conhecimento da minha existência e o orientador da degustação pediu que eu descrevesse os vinhos.

Descrevi um a um explicando que embora todos fossem da uva Shiraz, eram muito diferentes, produto da orientação para o Sul, ousei até mesmo dizer os azimutes com graus e minutos. Hermitage a Sudoeste, Cote-Rôtie a Sudeste, Crozes-Hermitage para o Oeste e Saint Joseph, duas horas a menos de insolação por dia, a Leste. Todos aplaudiram e ela curvando o corpo para frente, expôs um pouco seus seios e sussurrou : “ Não esqueça que o doce aroma do Cote-Rôtie é acentuado pelo perfume da Viognier.”

Na degustação seguinte, avancei mais uma cadeira. Ela sentou ao meu lado e sorriu, eu, sempre fiel ao meu plano, sorri simpático, comentei alguns vinhos mas nem meu nome eu disse e nem o dela perguntei.

E assim continuamos por muito tempo. Sempre sentados juntos, apenas trocando sorrisos e falando sobre vinho. Nada mais , nada menos. Nada que sugerisse um encontro. Uma única vez seu braço tocou o meu mas desculpo-se logo em seguida.

Meses depois, houve uma degustação sobre Espanha e a estrela da noite era o mítico Vega-Sicília.

Ela chegou, sentou-se ao meu lado e falou incisivamente:

“ Você não me engana, me segue desde que nos vimos naquele restaurante. Nunca se interessou por vinhos. Você vem a todas estas degustações por mim. O fogo da paixão arde em seus olhos e isto tem que ter um fim, não pode continuar, é insano. E mudando o tom de voz para um sussurro morno: Eu quero você, já e agora, vamos sair daqui”.

Retruquei:

Mas logo hoje que vai ter Vega-Sicília ?

Coisas do Vinho

Quando falam de vinho, muita gente se sente intimidado. Seja pelo ritual, seja pelos preços e lendas ao redor de alguns rótulos. Por enquanto, e espero que seja sempre assim, ainda prefiro abrir uma honesta garrafa para beber vinho do que para falar dele. O que entendo do assunto daria para pouco mais do que uma onomatopéia perto de tanta gente boa da ABS e outras confrarias que tenho o prazer de acompanhar.

Tarefa mais difícil que falar é escrever, mas pré-requisito para isso, é desenvolver o olfato, visão e paladar as palavras que o vinho pede que sejam ditas sobre si. É aí que a coisa pega pra muita gente. Parecia impossível tornar uma degustação algo simples, fácil e sem afetações para pessoas sem o costume do vinho. Mas isso aconteceu.

Utilizei o tema "Outono" para conduzir a degustação. A idéia era provar quatro tintos europeus que seriam vinhos para um estação mais fresca e seca como o outono.

Aqui já posso fazer minha primeira observação: os vinhos eram tão bons que não me incomodo em bebê-los o ano todo. Mas enfim, os vinhos de outono que selecionei foram os seguintes:

. Dão Touriga Nacional 2000, Quinta dos Roques (Dão, Portugal)
. Gran Feudo Viñas Viejas 2000, Julián Chivite (Navarra, Espanha)
. Château de Maucaillou 97 (Bordeaux, França)
. Amarone Classico 'I Castei' 99, Michele Castellani (Veneto, Itália)

Para uma degustação entre amigos ou para pessoas que estão iniciando acho importantíssimo que a degustação aconteça em um ambiente o mais relaxado possível e a degustação foi daquelas harmonizações perfeitas entre a simpática acolhida dos anfitriões e amigos a este apaixonado por vinho. Confesso que minha contribuição foi menos que 10%. os vinhos falaram por sí.

Foi muito bacana poder comparar os aromas e sabores de vinhos tão bons e aprender um pouco sobre suas histórias e poder passa-las pra frente. Terminamos a noite se não mais entendidos em vinhos, pelo menos com a boca cheia de novos sabores – frutas secas, terra molhada e couro, por exemplo – e provando dois pratos deliciosos que preparam de surpresa.

Na minha modesta opinião, o Gran Feudo foi o vinho que melhor se harmonizou com o bom papo reinante. Não se sabe se foram os aromas, o sabor ou a quantidade nem se meus amigos concordam com minha escolha, mas o espanhol e seus colegas de taça fizeram com que pessoas que mal se conheciam saíssem de lá quase como velhos amigos. Coisas do vinho.

Série Encontros Inusitados - Que Praga

Madrugada, corpo largado na poltrona. Livro no chão.

Ainda sentia o arôma de amêndoas que o porto na taça exalava. Ao fundo,a vozes em uma lingua estranha, que suponho fosse tcheco, pairava em algum lugar. Foi a última coisa normal que pude identificar em meio a névoa de sono.

- Nossa que gosto forte! Porque dizem que é impossível comer um só ?

No chão da sala, uma barata falava! Se fosse um grilo talvez teria questionado minha sanidade.

- E esse ai com um M grande e amarelo com essas pessoas sorrindo na TV com caras de bobo...nossa elas comem cada porcaria ! Até as baratas percebem, a comida fria que o vigia traz de casa é até mais gostosa.

- Verdade, comentei com a barata, e ele ainda deve agradecer por este emprego mesmo estando aqui por piedade.

- Piedade ? Por que ?

- Depois dos alarmes, cercas elétricas pra que um vigia de bairro ? Mesmo a policia sendo do jeito que é deve ser mais rápida que ele.

- Como você é insensível, ele e muitas outras pessoas precisam apenas trabalhar pra sustentar suas familias, ganhar o sagrado pão de cada dia.

- Sim, é verdade, mas não seria melhor qualifica-los pra algo mais produtivo ou por trás de uma falsa dignidade exageramos no valor que damos ao trabalho impondo pra essas pessoas serviços inúteis. Será tão ruim assim passar o tempo sem fazer nada, olhando a vida sem perspectivas, anseios, horizontes e objetivos que as vezes nem são nossos?

- Alguem acordou revoltado hoje ?

- Revoltado deve estar você sendo obrigada a comer restos que caem no chão.

- Meu amigo, tenho asas e posso voar pra onde me der na telha e aproveitar todas as delicias dete mundo. Posso pousar nos melhores restaurantes da cidade, comer seus melhore pratos e beber os melhores vinhos sem me preocupar com o valor da conta. Posso ir nas melhores peças e shows e escolher o melhor lugar para sentar. Tenho outra vantagem, conheço minha condição, sei das coisas que sei e tambem das que eu não sei. Leio livros, jornais, tenho acesso a cultura, questiono.Penso, logo existo.

Respondi com um grunhido achando essa conversa muita estranha.

- Posso tomar os melhores vinhos das melhores safras, sentir os aromas, o corpo, observar de perto as lágrimas, o púrpura do vinho do porto e combina-los com as delícias da cozinha mediterrânea ou de qualquer parte do mundo.

Meu olhar continuava enuviado mas a testa já franzia.

- Quer maior ignorância que não saber o que não sabe ?

Antes que ela pudesse concluir algo eu a interrompi:

- Desculpe, mas quem é você ?

- Oh! Que rude eu fui, não nos apresentamos, me chamo Gregor Samsa...

Um silêncio se fez na sala seguido de um movimento e um som crocante. Sorri para aquele prazer momentâneo.

- Tá bom, eu sou o Franz Kafka e a cor desse vinho do porto não é púrpura é ambar.

Detesto barata metida a sabichona.

Série Encontros Inusitados

Ao tomar meu lugar no restaurante onde participaria de uma degustação às cegas não pude deixar de notar um inglês de perfil aquilino, alto, magro que sentara ao meu lado que sem preâmbulos me disse: Preciso de sua ajuda, não entendo absolutamente nada de vinhos apesar de de ter acurada percepção olfativa. Nunca estive em uma prova de vinhos antes.

Éramos em cinco. Depois de recebidas as fichas de avaliação começamos o ritual em profundo silêncio e concentração.

Após as provas, vieram as considerações, uma a uma:

O primeiro, um francês, afirmou que o primeiro vinho era um Malbec da região de Cotes-du-Rhône da safra de 1997 com mais concentração tânica que o normal. O segundo ele considerou ser um Cabernet Sauvignon da região do Languedoc da safra de 1999 com talvez um corte de Shiraz, o terceiro vinho um assemblage de Vannières 1995. O quarto vinho era sem dúvida um Cabernet Franc e o quinto um Bordeaux com aromas de mofo.

O segundo, A. Doyle, concordou que quinto vinho era um Bordeaux de baixa qualidade e que derveria ser evitado. Quanto ao assemblage, discordava, era Domainde d´Ott e não um Vannières. O primeiro vinho seria um Ventoux de safra medíocre e o segundo um Hermitage explêndido de 98.

O terceiro, outro francês, decepcionou a todos dizendo que eram apenas tintos simples de mesa.

Paramos para um típico "coffie brequê" , quando na volta meu colega inglês tomou a palavra e disse:

" O primeiro vinho vinho de maciez admirável, boa concentração de tâninos de qualidade, aromas mentolados com toques de ervas é um Merlot. O Segundo é um assemblage com prováveis 65% de Shiraz em sua composição adicionados aos 15% de Crenache, 10% de Carignan e 10% de Cabernet Sauvignon. O terceiro vinho é experimental da uva Syraz feito sob microvinificação sem aromas definidos ainda, bastante jovem. Finalmente o quarto vinho é um Carbert Sauvignon de 1990, Cinsault, muito bem elaborado e de ótimo acabamento. O quinto vinho é realmente um Bordeaux ordinário.

Com exceção do Bordeaux todos são de Languedoc, Village Saint-Efigênia, produzidos por M Blackwood, nosso companheiro aqui presente."

Entusiasmados, aplaudimos de pé.

Dando uma carona pra ele em meu carro, depois de meus incansáveis apelos ele explicou: Quando percebi que Blackwood era um produtor, aproveitei o intervalo e acessei via o site da vinícola. Como ele só tinha quatro vinhos eu deduzi que um dos vinhos não era dele e como ninguem é estúpido de levar um vinho melhor que os seus, só podia ser o Bordeaux que os outros degustadores haviam identificado ao notar o aroma de mofo. Depois disto, usando as fichas técnicas, foi fácil identificar os quatro pelos aromas, que como você sabe é minha especialidade.

Você disse que pelas unhas, pelos dedos, pela roupa e pelo sotaque, consegue identificar uma pessoa, mas Blackwood é um homem de mãos finas, sotaque parisiense, ruivo e alto, bem típico do norte da frança. Como é que você descobriu que ele era um produtor ?

" Elementar meu caro Zainer, ele era o único que parecia não entender de vinho"

E assim me despedi dele, deixando-o em frente a sua casa no 221 da Baker Street, nunca mais vi meu amigo Sherlock Holmes.

Vale a pena experimentar