Série Encontros Inusitados: A saga dos 5 rótulos Parte I

Acho foi em “As Mansões Filosofais” de Fulcanelli onde li que os túmulos dos homens sábios possuem um estranho magnetismo. Desde então, cultivo o hábito de visitá-los quando posso. Acredito que estão repletos da "alma" de seus ilustres habitantes. Costumo tocar as pedras sepulcrais na esperança de compartilhar experiências de vida e "absorver" qualidades excepcionais, da mesma maneira que um religioso se aproxima de relíquias de santos para ganhar bênçãos celestes, ou índios canibais devoravam o corpo de pessoas admiradas para "roubar" suas virtudes.

Para estas excentricidades do meu espírito, nenhum cenário mais apropriado do que a basílica de Santa Croce, localizada no berço do Renascimento. A belíssima fachada de mármore, branco, verde e rosa, escondem um interior adornado por capelas projetadas por Giotto, Della Robbia e Brunelleschi e, o mais importante, as sepulturas de gênios como Michelangelo, Maquiavel, Galileu Galilei e Dante Alighieri.

Do nada uma pessoa me interrompe com um sotaque estranho, mas falando em português. "Você sabia que Michelangelo foi sepultado nessa mesa, após ter seu corpo roubado pelos florentinos?". Como desejava estar de corpo presente na Santa Croce sozinho e próximo do silêncio que aproxima os séculos, fiz um esforço para ser amigável e cultivar uma amizade, confesso que por interesse, depois de observar uma insígnia em seu colete. "Você tem a chave daqui?", perguntei, poucos minutos antes de acabar o horário de visitação. "Sou um dos anjos-guardiões", gabou-se ele. "Estudo geometria sagrada e gostaria de fazer algumas medidas e observações. Mas preciso de sossego. Você me entende?", confidenciei-lhe. "Estamos falando de 300 euros", afirmou sem rodeios, para meu espanto. Negociamos a cópia das chaves em 250 euros e um botton da bandeira do Brasil que sempre levo para presentear os aficionados pelo exotismo tropical.

Horas depois, eu ingressava na Santa Croce com um candelabro, cópias de “A divina Comédia”, outra de “Diálogo sobre os Grandes Sistemas do Universo”, “O Príncipe”, “Gabriela”, umas páginas impressas da internet sobre obra renascentista e uma maleta de degustação com quatro rótulos italianos e um brasileiro cuidadosamente selecionados e com as taças apropriadas. Senti-me atraído para o túmulo de Dante, autor de A Divina Comédia. Exilado de sua terra natal em 1302, após seus partidários políticos, os Bianchi, perderem uma disputa para os rivais, os Neri, o poeta morreu e foi sepultado em Ravena. Florença quis resgatar os restos mortais de seu filho ilustre e construiu um imponente sepulcro em Santa Croce. Mas seus ossos nunca foram transladados para lá. Abaixo daquela imensa estátua de Dante, havia uma urna vazia. O monumento fúnebre expunha uma mágoa de séculos. O rosto da escultura, iluminado pela luz amarelada da vela em meu candelábro, revelava uma tristeza sombria. Desarrolhei a garrafa de "Vaio Amaron", vinho produzido pelo conde Pieralvise Serego Alighieri na propriedade Casal dei Ronchi, em Gargagnago, adquirida, em 1353, por um dos três filhos de Dante, na região de seu exílio.

Sentado no chão, sorvi o primeiro gole daquela bebida concentrada, complexa e aveludada, lendo o verso inicial da obra-prima do poeta: "Nel mezzo del cammin di nostra vita/mi ritrovai per una selva oscura/che la diritta via era smarrita./ Ahi quanto a dir qual era è cosa dura/esta selva selvaggia e aspra forte/che nel pensier rinova la paura!/ Tant'è amara che poço è più morte;" (Quando eu me encontrava na metade do caminho de nossa vida, me vi perdido em uma selva escura, e a minha vida não mais seguia o caminho certo. Ah, como é difícil descrevê-la! Aquela selva era tão selvagem, cruel, amarga, que sua simples lembrança me traz de volta o medo. Creio que nem mesmo a morte poderia ser tão terrível...). Ouvi um longo suspiro. Fui surpreendido por um homem todo vestido de vermelho. Cabeça coberta e emoldurada por uma coroa de louros. O rosto era inconfundível. Eu estava diante do poeta Dante.

"Onde estou?", questionou-me surpreso. "Em Florença", respondi-lhe, oferecendo-lhe uma taça do vinho de seus descendentes. "Finalmente voltei para casa", disse-me, sorrindo. Durante horas, o poeta me contou a saga iniciada no momento de sua morte, quando foi arrastado para o mundo que ele próprio criara. Falou com detalhes sobre cada um dos nove círculos do inferno e do purgatório. E da ansiedade em chegar ao Paraíso. Fez uma longa pausa assim que terminou a quarta taça do Amarone. "E como é o Paraíso?", questionei curioso. Sem dizer nada, ele abriu outro largo sorriso. Seus olhos, distantes no tempo e no espaço. "Minha Beatriz... Estou pronto. Podemos ir", disse, desaparecendo subitamente. O poeta partia com a musa que conhecera aos nove anos e pela qual nutrira uma paixão platônica por toda a vida.

Reconciliado com sua cidade e de braços dados com sua alma gêmea, Dante havia chegado ao próprio paraíso.

Eu, na terra, ainda com 4 garrafas.

2 comentários:

Anônimo disse...

Hummm... podemos dizer que, pela primeira vez, alguém chega ao paraíso depois de uma garrafa de vinho! :))

Quero ver as outras garrafas!

Andre Martin disse...

O mais divertido foi uma pessoa irromper do nada e ainda falando em português com um sotaque estranho...
O botton que você usou para negociar com ele pelas chaves estava na lapela, na mochila ou à vista em algum lugar??
Fiquei pensando... não seria natural chegar falando italiano ou fiorentino?
Que ele fosse guardião, eu acredito; mas pra anjo... tava corrupto demais! rsss

Vale a pena experimentar