Série Encontros Inusitados: A saga dos 5 rótulos Parte V

“O marinheiro sueco, um loiro de quase dois metros, entrou no bar, soltou um bafo pesado de álcool na cara de Nacib e apontou com o dedo as garrafas de “Cana de Ilhéus”. Um olhar suplicante, umas palavras em língua impossível. Já cumprira Nacib, na véspera, seu dever de cidadão, servira cachaça de graça aos marinheiros. Passou o dedo indicador no polegar, a perguntar pelo dinheiro.Vasculhou os bolsos o loiro sueco, nem sinal de dinheiro. Mas descobriu um broche engraçado, uma sereia dourada. No balcão colocou a nórdica mãe-d'água, Yemanjá de Estocolmo. Os olhos do árabe fitavam Gabriela a dobrar a esquina por detrás da Igreja. Mirou a sereia, seu rabo de peixe. Assim era a anca de Gabriela. Mulher tão de fogo no mundo não havia, com aquele calor, aquela ternura, aqueles suspiros, aquele langor. Quanto mais dormia com ela, mais tinha vontade. Parecia feita de canto e dança, de sol e luar, era de cravo e canela...”


Mesmo relendo, sempre me surpreendo com os romances de Jorge Amado assim como também me surpreendo com os vinhos feitos no Vale do São Francisco cada vez que provo uma nova safra. Em uma visita rápida ao nordeste brasileiro tive a oportunidade de conhecer parte da nossa nova e mais promissora região produtora de vinhos e também percorrer em 20 minutos os cômodos da casa em que Jorge Amado e Zélia Gattai moraram.

Quando o passeio acabou sentei numa banqueta próxima a casa de Jorge Amado e abri “Gabriela”. Depois de um tempo, fechei o livro e comecei a me imaginar abrindo uma garrafa de vinho na cozinha daquela simpática casa.Pensei na coleção de copos que Jorge Amado tinha diabos e mulheres nuas me fariam cometer a heresia de dispensar a taça. Deixei o livro de lado e procurei o responsável pela manutenção do lugar. "Gostaria de visitar a casa à noite. E sozinho", disse-lhe. "Não é possível. As visitas são guiadas e realizadas em determinados horários", respondeu-me. Algumas regras existem para serem burladas. E eu estava disposto a gastar alguns reais para realizar meu desejo.

Pontualmente, depois da novela das oito, estava diante da casa de Jorge Amado. Maleta à mão, esperei cerca quarenta e cinco minutos, o que na Bahia é praticamente o tempo médio de um preparo “ fast-food” qualquer. Um guarda surgiu do lado de fora, olhou para mim parecendo que me conhecia. Tive a mesma sensação. Aproximou-se lentamente e com um sorriso amigo sussurrou: "É democrata?". Retruquei: " na mais pura acepção da palavra". A senha e a contra-senha compunham a forma com que Jorge Amado se referia a Castro Alves “Um democrata na mais pura acepção da palavra”. Paguei o restante da propina e passei pelo portão. Com lanterna na mão, ele me levou até a entrada da cozinha. "Fique à vontade. Não precisa ter pressa e sair pela rua acordando as estátuas", disse com um sotaque estranho que não parecia nem de longe baiano mas que por algum motivo parecia familiar pra mim.

Velas em dois castiçais criavam uma atmosfera lúgubre. Poética. Retirei de minha maleta o último vinho que restava e aproximei-me da coleção de copos coloridos. Um estrondo. Meu coração disparou. Alguém surgiu de dentro do armário da cozinha. Olhos atentos. Sorriso no rosto. Poesia nos lábios: " Que coisa! Quem diria! Trinta e cinco quilômetros em hora e meia...Antigamente a gente levava dois dias, a cavalo....". Até cair a ficha que eu já havia lido aquele trecho em “Gabriela”, eu já tinha caído sentado na cadeira da cozinha.

Ele apanhou três copos e sentou-se ao meu lado. "Estou acostumado a beber com a Zélia, mas é cachaça, como hoje espero a visita de um amigo seu vinho vai cair muito bem", confidenciou Jorge Amado. Poucos minutos depois, o poeta levantou-se para atender a porta. "Meu grande amigo brasileiro" saudou o visitante com um forte abraço. Era o escritor Pablo Neruda. "Faz tempo que a gente não se encontra” meu conterrâneo questionou o chileno com um sorriso de deboche.

Em algumas férias, Pablo costumava visitar o amigo na Bahia. Mas fazia questão de levar os vinhos de seu país. "São os melhores", repetia toda vez que uma garrafa era aberta durante o almoço ou jantar preparado por Zélia Gattai. Certa vez, Jorge Amado resolveu pregar uma peça no amigo. Comprou vinho brasileiro de garrafão e encheu garrafas com rótulos chilenos. "Quanto você quer apostar que ele nem vai perceber?", perguntou à esposa. Risadas. Na quarta taça, Pablo fez um brinde especial: "Aos vinhos chilenos. Isso sim é que é vinho, no Brasil, vocês deveriam produzir apenas cachaça". Zélia e Jorge se entreolharam e caíram na gargalhada. "O que foi?", indagou o poeta, ressabiado. "Isso é vinho brasileiro... E dos mais ruinzinhos", entregou Jorge. "Então, um brinde aos brasileiros", contornou Pablo, rindo com os dois.

"Você sabia que nós estamos entre os maiores exportadores de vinho do mundo? Já ouviu falar dos Chatôs Chilenos?". "Não, mas vamos descobrir depois de tomarmos o vinho que nosso amigo trouxe do Vale do São Francisco", respondeu Jorge. A garrafa se foi praticamente em um piscar de olhos quando, então, o poeta abriu um armário e retirou os mais prestigiados vinhos do Chile. Na sexta garrafa, Jorge cometeu a ousadia de interromper Pablo enquanto ele divagava sobre os mistérios do mar. "Esse negócio de Chatôs Chilenos não está com nada", disse, fitando a ilustração da mulher nua em seu copo. "Por que não?", indagou o poeta, surpreso. "Já ouviu falar dos Castelinhos vermelhos aqui do Brasil? ", indagou Jorge. Sorriso maroto. Pablo riu e improvisou uma poesia. Era a melhor descrição de uma mulher que eu jamais ouvira. "Você está falando da minha Gabriela", brincou o baiano, colocando sua garrafa de cachaça sobre a mesa. E emendou: "Agora vamos tomar do meu Chatô". Todos nós caimos na gargalhada. "Um brinde às brasileiras", adiantou-se Pablo, elevando o copo com a mais pura “Cana de Ilhéus”..

4 comentários:

Anônimo disse...

Que tal você acrescentar mais alguns rótulos nestes encontros? Uma delícia!! :)

beijos

Andre Martin disse...

rsrsrsr
"Algumas regras existem para serem burladas"... acho que este rótulo acaba por resumir os outros 5.

E Pablo se mostrou tão entendido de vinhos quanto eu! hahahahaha

Zainer Araujo disse...

huahuahu Obrigado pessoal !

Raquel Sanches disse...

Estou lendo seu blog...nossa suas historias sao otimas

Vale a pena experimentar