Madrugada, corpo largado na poltrona. Livro no chão.
Ainda sentia o arôma de amêndoas que o porto na taça exalava. Ao fundo,a vozes em uma lingua estranha, que suponho fosse tcheco, pairava em algum lugar. Foi a última coisa normal que pude identificar em meio a névoa de sono.
- Nossa que gosto forte! Porque dizem que é impossível comer um só ?
No chão da sala, uma barata falava! Se fosse um grilo talvez teria questionado minha sanidade.
- E esse ai com um M grande e amarelo com essas pessoas sorrindo na TV com caras de bobo...nossa elas comem cada porcaria ! Até as baratas percebem, a comida fria que o vigia traz de casa é até mais gostosa.
- Verdade, comentei com a barata, e ele ainda deve agradecer por este emprego mesmo estando aqui por piedade.
- Piedade ? Por que ?
- Depois dos alarmes, cercas elétricas pra que um vigia de bairro ? Mesmo a policia sendo do jeito que é deve ser mais rápida que ele.
- Como você é insensível, ele e muitas outras pessoas precisam apenas trabalhar pra sustentar suas familias, ganhar o sagrado pão de cada dia.
- Sim, é verdade, mas não seria melhor qualifica-los pra algo mais produtivo ou por trás de uma falsa dignidade exageramos no valor que damos ao trabalho impondo pra essas pessoas serviços inúteis. Será tão ruim assim passar o tempo sem fazer nada, olhando a vida sem perspectivas, anseios, horizontes e objetivos que as vezes nem são nossos?
- Alguem acordou revoltado hoje ?
- Revoltado deve estar você sendo obrigada a comer restos que caem no chão.
- Meu amigo, tenho asas e posso voar pra onde me der na telha e aproveitar todas as delicias dete mundo. Posso pousar nos melhores restaurantes da cidade, comer seus melhore pratos e beber os melhores vinhos sem me preocupar com o valor da conta. Posso ir nas melhores peças e shows e escolher o melhor lugar para sentar. Tenho outra vantagem, conheço minha condição, sei das coisas que sei e tambem das que eu não sei. Leio livros, jornais, tenho acesso a cultura, questiono.Penso, logo existo.
Respondi com um grunhido achando essa conversa muita estranha.
- Posso tomar os melhores vinhos das melhores safras, sentir os aromas, o corpo, observar de perto as lágrimas, o púrpura do vinho do porto e combina-los com as delícias da cozinha mediterrânea ou de qualquer parte do mundo.
Meu olhar continuava enuviado mas a testa já franzia.
- Quer maior ignorância que não saber o que não sabe ?
Antes que ela pudesse concluir algo eu a interrompi:
- Desculpe, mas quem é você ?
- Oh! Que rude eu fui, não nos apresentamos, me chamo Gregor Samsa...
Um silêncio se fez na sala seguido de um movimento e um som crocante. Sorri para aquele prazer momentâneo.
- Tá bom, eu sou o Franz Kafka e a cor desse vinho do porto não é púrpura é ambar.
Detesto barata metida a sabichona.
Um comentário:
Eca! Nojento!
Muito bom! :))
bjs
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