Série Encontros Inusitados: A ameaça de Irache


Com mochila nas costas e cajado na mão, resolvi trocar os prazeres da boa vida pelo estoicismo dos cristãos medievais. É com esta imagem que começo a peregrinação até Santiago de Compostela.

Quanto aos vinhos, não espero cruzar com nenhum rótulo prestigiado das regiões produtoras que vou atravessar especialmente Rioja. Talvez vinhos rústicos de família, servidos em jarros de barro ou garrafas reutilizadas inúmeras vezes.

Após alguns dias de caminhada e refeições à base de carne, peixe e massa, eu chego a um dos pontos considerados emblemáticos pelos caminhantes, a "Fonte de Irache", construída em 1991 pela bodega do mesmo nome com a intenção de oferecer aos peregrinos, gratuitamente, todo o vinho que pudessem beber. Basta abrir uma das duas torneiras - a outra é de água - e se deliciar diretamente na fonte. Quando a esmola é demais o santo desconfia. Não tenho nenhuma pretensão de degustar um vinho excepcional de Navarra, ainda mais naquelas circunstâncias. Isso não me impediu de ficar imensamente infeliz ao perceber que não havia vinho nenhum jorrando lá. E ainda mais após ler um comunicado pendurado na parede, alertando aos passantes que para chegar com saúde a Santiago deveriam provar o vinho de Irache. Cético, claro, não acredito na ameaça e ignoro os vinhos em lata comercializados em uma antiga geladeira de coca-cola.

À noite, após deixar Irache e caminhar todo o dia praticamente sem descanso percebo que se tivesse comprado uma latinha de vinho, talvez tivesse sido poupado de uma lesão no joelho esquerdo e de dezenas de bolhas nos pés que quase acabaram com essa minha aventura.

Com bolhas e sem vinho vou adiante, rezando para que nada de mal me aconteça. Mas a benção - ou maldição - do vinho parece me acompanhar dia-a-dia. O ditado "com pão e vinho se faz um bom caminho" parece slogan publicitário das vinícolas espanholas que estão na rota de peregrinação, mas transcende o hábito moderno da degustação e encontram respaldo nas características medicinais da bebida, já observadas pelo grego Hipócrates, centenas de anos antes de Cristo. "O vinho é uma bebida substancialmente maravilhosa apropriada ao homem, na saúde e na doença, se o administrarmos na justa medida, segundo a constituição de cada um", disse o pai da medicina. Mas, como disse o dramaturgo Eurípedes, conterrâneo de Hipócrates, "o vinho foi dado ao homem para acalmar suas fadigas". E eu, um enófilo penitente, pretendia ter forças para pagar todos os meus pecados - incluindo os da gula - e me livrar da ameaça de Irache a qualquer custo.

Com refeições ainda à base de carne, peixe, massa e vinhos que animam o corpo e desanimam o espírito, chego a um vilarejo chamado Bercianos del Camino, tão pequeno que poderia ser atravessado de ponta a ponta em poucos minutos. Na chegada, sou saudado por um homem sorridente que me conduz ao único albergue do pueblo. É o hospitaleiro. Muito religioso, disse que o pagamento é donativo e a refeição, comunitária. No único armazém existente, cometo uma heresia e compro um vinho em embalagem Tetra Pack, a única opção disponível. Na "sala de jantar", duas mesas de madeira são compartilhadas por dezenas de peregrinos. Fico assustado com a quantidade de Tetra Packs. Antes do "banquete", orações em espanhol e a tradicional canção do peregrino entoada em francês. Logo, pratos de salada e macarronada com pedaços de embutidos, preparados pelos hospitaleiros, circulam entre pessoas famintas.

Ressabiado, aceito em um copo de plástico a "dádiva de Dionísio". Imaginei que o deus grego estivesse no Olimpo dando gargalhadas da minha sorte. Mas sua alegria durou pouco. No primeiro gole, aquele vinho parecia mais elegante do que o "Château Margaux ". Na sobremesa, era melhor do que o mítico "Chateau d´Yquem ". O caminho de Santiago de Compostela é cheio de histórias misteriosas, de encontros com anjos e demônios e dos mais diversos milagres. Hoje, eu acredito ter participado de um milagre.

8 comentários:

Anônimo disse...

Essa de refeição comunitária, lembrou-me da Serra do Caraça, em Minas, onde tem uma pousada administrada por frades. Lá, onde tem o quase extinção lobo-guará que é alimentado por um frade e é atração turística.
Bom, mas lá as refeiçòes são comunitárias, e no café da manhã voce praticamente tem que fazer o próprio café!
Só falta o vinho!!!

bjs e adorei essa viagem!

Paula Scheffini disse...

Tudo depende mesmo do ponto de vista

PreDatado disse...

Minha avó dizia: Quem tem fome, cardos come.

Não admira que o "vinho tetra-pack" lhe parecesse um néctar dos deuses.

Andre Martin disse...

Ah, o caminho de Santiago...

Sabia que São Tiago é o mesmo que São Jacó??

Passando pelo caminho de Santiago:
São Tiago << San Tiago << Santiago << Saint Iago << Santo Jacó

CQD

Zainer Araujo disse...

É pré-datado...a imaginação é amiga da necessidade (ou cousa assim).

São Jacó ! Não fazia ideia...o Jacó é mais legal que Thiago. Por que não usaram Jacó ?

Andre Martin disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Andre Martin disse...

Por que? Ora, porque caiu no popular... Que nem na Espanha os José são chamados de Pepe... Sabe por que? Nos antigos textos latinos da Igreja Católica aparece PP depois da citação de São José como pai de Jesus (JHS PP - Jesus Hominum Salvator Pater Putativus), por isso, em Espanha, todos aqueles que se chamam José recebem o apelido de Pepe - PP é abreviatura de 'pater putativus', suposto ou presumível pai de Jesus.

Jacob se escrevia com J, que já foi chamado de I-grande... tanto que quando minúsculo ainda leva o acento e tem uma perna mais longa que o i. Daí se ouvir Yesu, Yosef, Yohan, Yacob, mas se escrever com J.
Mas no som de Yacob, o B final era surdo... Com o Saint na frente, o T mudo no final passou a ter voz quando juntado com o I-grande, daí ficou SanTYáco... Que cá entre nós, Santiago é muito mais sonoro!

Um processo semelhante de distorção de nome ocorreu com IVÃ, que veio de JOÃO. (ahá: esta quase ninguém sabia!)

JOÃO << JOAN(O) << JUAN << JVAN << IVAN << IVÃ

A letra romana para U se confunde com o V.

Jorge disse...

Zainer, sei bem o que você passou no Caminho. Fiz em 2011 e 2013. Tomei uma garrafa todas as noites na janta, preparando para a caminhada do dia seguinte. Mais o interessante de tudo foi que o melhor vinho que tomei no caminho custou 1 (um) euro e foi em Villadangos del Paramo, pueblo bem menor que Bercianos del Camino. Gostei muito do seu blog, parabém!

Vale a pena experimentar