Série Encontros Inusitados: A saga dos 5 rótulos Parte II

Ninguém sequer imagina atribuir a Jesus Cristos, características como impiedoso, severo e vingativo, exceto uma pessoa: O genial e contraditório Michelangelo.

Ele descendia de uma família aristocrática, mas após semanas exaustivas de trabalho, com suas roupas sujas e com um terrível odor, poderia facilmente ser confundido com um indigente. Era profundamente religioso, mas não dava importancia a autoridade do Bispo de Roma. Uma vez foi contrariado, fugiu do Vaticano à noite cavalgando rumo a Florença. Retornou à Santa Sé após a insistência de Júlio II. Como um autêntico renascentista, dedicou-se a diversas artes. Aventurou-se pela poesia e escreveu Coletânea de Rimas, porém sua maior inspiração não estava na pena de escritor, mas em blocos de mármore.

"Eu vi um anjo no mármore e esculpi até libertá-lo", teria dito uma vez. Quando o Papa quis transformá-lo em um pintor e encomendou a ele a Capela Sistina, Michelangelo extraiu dos pincéis uma das mais belas poesias que o mundo já contemplou.

Com umas páginas extraídas da internet sobre arte renascentista, um "Brunello de Montalcino ", duas taças e uma pergunta, aproximei-me do túmulo de Michelangelo na basílica de Santa Croce, após um encontro com Dante Alighieri minutos antes.

Era noite e o interior da igreja estava escuro. Com meu candelabro iluminei o esquife de Michelangelo, criado por Giorgio Vasari. Três lindas mulheres esculpidas em mármore sobre a urna funerária representavam a Arquitetura, a Escultura e a Pintura. Tinham uma expressão triste no rosto. A morte do genial artista deixou as Artes desamparadas. E isso era mais do que uma simples metáfora. Sentei no chão e procurei a página que havia impresso sobre o Juízo Final. Desarrolhei a garrafa e servi o vinho. Rodei a taça com minha mão direita e a elevei para cima, como se estivesse brindando a Michelangelo. O gesto era proposital e imitava uma de suas obras: a escultura de Baco, encomendada pelo banqueiro romano Jacopo Galli, em 1497. Apreciei os aromas complexos do vinho com os olhos na expressão impiedosa de Jesus Cristo. Logo abaixo do Filho de Deus estava São Bartolomeu, segurando a própria pele com a mão esquerda. Eu havia lido que o Santo que foi esfolado vivo e depois decapitado era na verdade um auto-retrato do artista. Senti no paladar a estrutura e a maciez do vinho. Seus taninos pareciam contraditórios e instigantes como Michelangelo.

Risos.

A Arquitetura, a Escultura e a Pintura não eram mais pedra triste. Deixaram o túmulo e estavam ao meu lado. Seus olhos brilhavam, contemplavam algo que eu não conseguia ver... Até que um homem com as roupas sujas de tinta e um odor forte de suor surgiu diante de nós. "Tanto tempo adormecido... o que você tem nessa taça?", perguntou. "Vinho", respondi, servindo-o na outra taça. "Mas que porcaria é essa?", cuspiu no chão. Fiquei assustado. Eu sabia que Michelangelo passara dias consumindo apenas pão e vinho. E que naquela época os vinhos eram transportados em recipientes de chumbo. Provavelmente o artista havia sido envenenado pela bebida - lembrei do meu amigo Holmes. Talvez sua reação fosse instintiva, sem nenhuma relação com a qualidade daquele Brunello.

"Esse é um dos melhores vinhos da região", respondi-lhe. "Não é melhor do que o vinho que eu bebia na taverna quando trabalhava em Roma, pintando o teto do Papa", desafiou-me. E contou que certo dia Sua Santidade exigiu que ele acrescentasse mais um anjo em uma das pinturas. Ele obedeceu, embora questionasse o gosto do Papa. No mesmo dia, foi à taverna beber vinho. "Estava uma maravilha, mas outro cliente reclamou que estava estragado e o dono destruiu os barris com um machado. Foi lamentável ver aquele desperdício", disse-me. Eu conhecia bem essa história, mas nem perdi tempo falando sobre os enochatos do mundo moderno. De repente, ele olhou para seu auto-retrato no Juízo Final. "Como se fosse uma velha serpente esgueirando-se/ Por uma estreita passagem/ E perdendo sua velha pele,/ Poderia me renovar,/ Abrir mão de meu estilo de vida e de todos os desejos humanos./ Tenho perfeita consciência de que, quando se está coberto/Com uma pele forte/ O mundo passa a não significar nada.". Ao terminar de recitar a poesia, encarou o crucifixo na nave central da Igreja. "Ele está sorrindo. Agora posso voar até o céu". Estava feliz como uma criança. Antes da viagem, virou-se para mim e disse: "Você tem um péssimo gosto para vinho". As Artes haviam se desvanecido.

Sem nenhuma companhia tomei mais duas taças de Brunello. "Já sei o estilo de vinho preferido de Michelangelo: bouchonné", conclui, aos risos.

Minha pergunta estava respondida,abri minha maleta e vi que restam ainda três garrafas de vinho.

Ainda não era o momento de deixar Santa Croce.

9 comentários:

Hugo de Oliveira disse...

Show...


abraços


Hugo

Ana disse...

Legal Z. Lembro quando voce publicou esses contos nos primeiros numeros do nosso jornal e lembro tambem que a Santa Croce entrou no roteiro da primeira viagem da confraria a Italia graças, em grande parte, as suas historias que instigaram nossa curiosidade. Pena que nao encontramos um guarda que nos deixasse beber lá dentro.

Beiju

Anônimo disse...

Muito Bom ! Esse episodio do vinho foi verdade mesmo ? Onde voce leu isso ?

Anônimo disse...

Opa...Voce tá mais pra pai de santo fazendo despacho que enofilo !!!! HAHAHAAHAHAHAH

Anônimo disse...

Cultura e vinho. Quer coisa melhor? Está sensacional esta série!

bjs

Andre Martin disse...

Cara,

Eu já teria desconfiado a mais tempo... Mas quando as "Três lindas mulheres esculpidas em mármore sobre a urna funerária representavam a Arquitetura, a Escultura e a Pintura" deixaram o túmulo para ficar ao seu lado, eu teria certeza! TEM ALGO A MAIS NESSA GARRAFA DE VINHO!!!! lol

E a pergunta do Anônimo não deveria ser "onde você leu isto?" mas talvez "onde (ou o quê) você bebeu (n)isso?" KKKKKK

Abraço!

Andre Martin disse...

Eu diria que "bouchoné" vem da palavra francesa "bouchon", que quer dizer "rolha", tampão, ou qualquer coisa que impede a passagem de um fluxo através de algum duto.

Mas por que concluiu que o estilo preferido era o tal vinho arrolhado? Uai? Todos não são tampados à rolha?

Zainer Araujo disse...

Obrigado pessoal, bom saber que estão gostando. Quando ao bouchoné é o nome que se dá quando a rolha, ou de baixa qualidade ou por mau armazenamento do vinho, permite a passagem de oxigenio desenvolvendo assim um fungo que "mata" o vinho deixando-o com um gosto que lembra ferrugem na maioria dos casos.

Pra "pai de santo" confesso que só faltou mesmo o charuto - rs


Na verdade eu escrevi essa série há muito tempo para o jornal do vinho logo nos seus primeiros números. Como eu sempre gostei de romances de mistérios eu tentei criar uma trama envolvendo vinho e a morte destes ilustres mas minhas limitações de conhecimento histórico unidos a minha falta de habilidade na escrita permitiram a criação apenas destes pequenos contos.

Zainer Araujo disse...

Obrigado pessoal, bom saber que estão gostando. Quando ao bouchoné é o nome que se dá quando a rolha, ou de baixa qualidade ou por mau armazenamento do vinho, permite a passagem de oxigenio desenvolvendo assim um fungo que "mata" o vinho deixando-o com um gosto que lembra ferrugem na maioria dos casos.

Pra "pai de santo" confesso que só faltou mesmo o charuto - rs


Na verdade eu escrevi essa série há muito tempo para o jornal do vinho logo nos seus primeiros números. Como eu sempre gostei de romances de mistérios eu tentei criar uma trama envolvendo vinho e a morte destes ilustres mas minhas limitações de conhecimento histórico unidos a minha falta de habilidade na escrita permitiram a criação apenas destes pequenos contos.

Vale a pena experimentar